Nota Informativa

O "no creditor worse off" na resolução de seguradoras

01/04/2022

A proposta de Diretiva para a recuperação e resolução de empresas de seguros e de resseguros consagra o princípio "no creditor worse off" conforme previsto na Diretiva de resolução bancária, abrindo portas a que o legislador português volte a repetir os erros que cometeu na transposição desta última para o ordenamento jurídico interno.

Não obstante, o trabalho do legislador será prever – sem margem para ambiguidades – o seguinte:

i) Os acionistas da empresa objeto de resolução são os primeiros a suportar as perdas na resolução;

ii) Os credores da empresa objeto de resolução suportam perdas a seguir aos acionistas, em conformidade com a ordem de prioridade dos seus créditos no quadro dos processos normais de insolvência;

iii) A absorção das perdas pelos acionistas ou pelos credores não pode ser desproporcional ou discriminatória;

iv) Nenhum credor deve suportar na resolução perdas mais elevadas do que as que teria suportado se a empresa objeto de resolução tivesse sido liquidada ao abrigo dos processos normais de insolvência;

v) Os Estados-Membros estão obrigados a assegurar a realização de uma avaliação por pessoa independente, o mais cedo possível depois da medida (ou medidas) de resolução produzirem efeitos – sugerindo-se que no ordenamento interno seja concretamente definido qual é esse momento.

Foi publicada pela Comissão Europeia, no dia 22 de setembro de 2021, uma proposta de diretiva para a recuperação e resolução das empresas de seguros e de resseguros (“Proposta”)1, que segue as passadas da já conhecida Diretiva 2014/59/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014 2 (“Diretiva da Reestruturação e Resolução Bancária” ou “DRRB”), aplicável ao setor bancário e financeiro. Na verdade, a Comissão Europeia fez praticamente um copy-paste do regime da resolução bancária, pelo que se revela urgente perceber se os problemas suscitados pela DRRB se mantêm agora e se vão ser transportados para o setor segurador.

Os princípios gerais que regem a resolução de empresas de seguros e de resseguros foram mantidos pelo legislador europeu, nomeadamente, no artigo 22.º da Proposta, o qual copia quase integralmente o artigo 34.º da DRRB. Focar-nos-emos aqui na consagração do princípio no creditor worse off (“NCWO”) na Proposta, fazendo um exercício comparativo com o regime já previsto para a resolução bancária.

A Proposta dispõe que “Os acionistas da empresa objeto de resolução suportam as primeiras perdas” 3. Logo aqui se suscita o primeiro problema: a margem de dúvida suficiente para que o intérprete se pergunte o que são “as primeiras perdas”. É evidente que a tradução oficial da Proposta para a língua portuguesa não foi a mais feliz. Contudo, quando comparada com a versão inglesa da Proposta e com o artigo 34.º da DRRB, torna-se claro que o legislador pretendeu determinar que os acionistas da empresa objeto de resolução são os primeiros a suportar as perdas – quaisquer que elas sejam – na resolução.
Isto implica então, por exemplo, que a autoridade de resolução nacional poderá vir a transferir as ações ou a totalidade ou parte dos ativos da empresa de seguros ou de resseguros em resolução para um comprador privado sem o consentimento dos acionistas, tal como acontece ao abrigo da DRRB.

Por seu turno, “os credores da empresa objeto de resolução suportam perdas a seguir aos acionistas, em conformidade com a ordem de prioridade dos seus créditos no quadro dos processos normais de insolvência” 4, o que significa, tal como acontece ao abrigo da DRRB, que a autoridade de resolução nacional pode determinar que apenas alguns passivos5 são transferidos da empresa resolvida para um comprador ou uma empresa de transição ou, ainda, amortizados ou convertidos em capital. Ou seja, permite-se a diferenciação de credores.

No entanto, a absorção das perdas pelos acionistas ou pelos credores não pode ser desproporcional ou discriminatória, tendo o legislador consagrado importantes exceções e limites que refletem essa preocupação 6. Por um lado, encontra-se limitado o poder de transferência e retransferência atribuído à autoridade de resolução nacional no que respeita aos acordos de garantia, convenções de compensação, convenções de compensação e de novação, contratos de seguro ligados a fundos de investimento ou outras carteiras, tratados de resseguro e acordos de financiamento estruturado 7. E, por outro, é salvaguardado o princípio de que nenhum credor deve suportar na resolução perdas mais elevadas do que as que teria suportado se a empresa objeto de resolução tivesse sido liquidada ao abrigo dos processos normais de insolvência. Esta segunda exceção é conhecida – conforme se mencionou já – como o princípio do “no creditor worse off” – que decorre do princípio do tratamento igualitário dos credores 8, este por sua vez já cosagrado no Direito Romano (par conditio creditorum) e assumido pelo código civil português 9, sendo pedra angular do princípio da responsabilidade patrimonial e, por consequência, dos regimes falimentares.

O princípio NCWO conforme consagrado na Proposta 10 faz jus à forma como o consagrou o legislador europeu na DRRB 11, obrigando também nesta sede os Estados-Membros a assegurar a realização de uma avaliação por pessoa independente, o mais cedo possível depois da medida (ou medidas) de resolução produzirem efeitos.

Quanto a esta concretização do princípio destacamos dois elementos essenciais: o elemento substancial e o elemento temporal presentes no artigo 54.º da Proposta, porquanto não só o legislador europeu (i) determinou quais os valores a calcular pela pessoa independente e os pressupostos de que deverá partir na elaboração do cálculo 12, como (ii) definiu que a avaliação terá de ser concluída o mais cedo possível, depois de a medida de resolução produzir efeitos – ficando clara a intenção do legislador de evitar danos na esfera dos credores decorrentes do atraso na realização da avaliação. Caso contrário, e sendo-lhe imputável o atraso, será a própria autoridade de resolução responsável por indemnizar os credores pelos danos provocados pelo referido atraso. Aliás, para efeitos de transposição para o ordenamento jurídico interno, sugere-se que o legislador concretize o momento em que deverá ser paga a compensação, numa lógica de proteção dos credores, enquanto parte desfavorecida no processo de liquidação.

Veja-se a este propósito, porém, o que aconteceu na transposição das normas sobre a avaliação do NCWO da DRRB para o ordenamento jurídico português. A DRRB prevê, e previa já à data, tal como a Proposta, que a avaliação seja feita o mais cedo possível após o momento em que a medida de resolução tenha produzido efeitos, ao passo que o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), na primeira transposição parcial da DRRB 13, adiou essa mesma avaliação para o fim da liquidação da instituição de crédito objeto de resolução. Esta configurou uma profunda e significativa violação dos objetivos da resolução bancária conforme prevista na DRRB, para além de todos os deveres que recaem sobre os Estados Membros no âmbito da implementação e transposição de diretivas, e, em particular, da tentativa do legislador europeu de evitar prejuízos maiores (e desnecessários) na esfera jurídica dos credores afetados pela resolução.

Tendo em consideração que um processo completo de resolução e liquidação de uma empresa de seguros ou de resseguros ou, pior, de um grupo segurador demorará largos anos a ser concluído, não se pode aceitar que o legislador nacional venha a obrigar os credores a esperar todo esse tempo para receber a compensação resultante do princípio do NCWO. Espera-se, portanto, que os erros cometidos no passado na transposição da DRRB não se repitam agora.

A avaliação deve, então, determinar se os acionistas e os credores da empresa de seguros ou de resseguros objeto de resolução teriam recebido um tratamento mais favorável se a empresa tivesse entrado, diretamente e no seu todo, em processo normal de insolvência. Assim, a avaliadora independente determina se o tratamento dos credores resultante da medida de resolução os vai (ou não) colocar, no mínimo, na mesma situação em que estariam se fossem tratados ao abrigo de um processo normal de insolvência e qual a diferença (caso exista) entre um tratamento e o outro.

Havendo essa diferença os Estados-Membros estão obrigados a assegurar o direito que o acionista, credor ou sistema de garantia de seguros terá ao pagamento da diferença 14. Em comparação com a DRRB 15, deixou nesta sede de se prever que o pagamento da diferença será feito pelos mecanismos de financiamento da resolução, deixando agora em aberto qual será a(s) entidade(s) a suportar o pagamento dessas indemnizações. Não nos parece que esse seja um bom caminho, principalmente se os próprios legisladores nacionais, na transposição da diretiva, não o definirem. A indefinição gerará um enfraquecimento da posição dos lesados, que poderão deixar de saber a quem exigir o pagamento da indemnização que lhes é devida ou, mesmo que assim não seja, poderá abrir um caminho para que as entidades envolvidas na resolução se desresponsabilizem pelo pagamento.

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